.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Estilhaços do espelho, espelho meu

Preciso abandonar o espelho por um tempo. Parar de me olhar, de ver sempre uma face que parece nunca mudar. Habituar-se à vista de si pelo espelho faz aparecer esse tipo de ilusão que nos lança pra dentro da repetição do mesmo. Chega de me olhar, chega de achar que não mudo nunca. Não se trata de nenhuma fuga de si, das questões da existência individual. Nunca fui só uma mulher mesmo, então não é disso que fala essa necessidade de não se olhar no espelho. Um rosto com poucas linhas delicadas, um pouco marcado pelo tempo, que deixa sobressair lábios de carne mais ou menos abundante, e olhos fundos, sombreados naturalmente pelo peso de viver. Cabelos meio desgrenhados, não muito lisos, com uma cor que não sei dizer, e uma pele clara, às vezes avermelhada. Sobrancelhas não finas, e orelhas pequenas. Nariz fino e um pouco alongado. Poderia dizer que esse é meu rosto. Ah, que tolice seria dizer isso! Que besteira! Um rosto não é essa coisa que apresenta o espelho. Não sou apenas essa imagem chapada, batida sobre si mesma, que se esgueira na superfície espelhada. O que sou? Não importa, não o sei, e possivelmente não o saberei. Acho que não é possível saber isso. Mas, abandonar a imagem do espelho, que faz parecer que nunca mudo, isso urge nesse exato momento. Conseguiríamos viver sem nos olhar por essa janela cega que não vê nada além? Estilhaço o espelho que só prolifera imagens iguais. Os cacos, cortaram-me um pouco. Os punhos sangram lentamente, ainda habitados por fragmentos do vidro quebrado. Daqui a pouco o sangue estanca, ou, a hemorragia se espalhará pelo resto do corpo. Só sei que prefiro essa imagem desfocada do punho cortado, e o contraste que o vermelho sangrado cria sobre o piso branco, que era asséptico demais, assim como a imagem duplicada antes vista.

Ana Laura Navegueiro

2 comentários:

georgeneri disse...

lindo texto, Mai.com divulgando afetos

Bruno disse...

Somos muitos, somos multidão. Um espelho só nos mostra o quão pouco nossos olhos conseguem alcançar. Outro dia conversei sobre o sol com um amigo. Ele dizia que o sol não muda nunca. Mas eu disse, baseado numa reportagem da Nasa, que o fato de nossos olhos não verem não significa que na superfície do sol não aconteçam explosões diversas...

www.costabbade.blogspot.com