Parece-nos que Freud aponta o fenômeno da repressão do desejo pelas regras externas criadas por uma sociedade, como propiciador central do mal-estar humano. Mas, já que é a repressão – em seus vários sentidos possíveis – que constitui mal-estares, por que mesmo após as supostas liberações – ocorridas principalmente ao longo do século XX – ainda paira sobre as cabeças civilizadas inúmeros mal-estares, que às vezes parecem ser mais intensos que outrora? É óbvio que essa indagação, e qualquer outra, não será respondida aqui, pois não se trata de responder algo, mas sim, de manter sempre abertos os campos de pensamento, as variações de percurso.
A repressão aparenta não ser a única coisa que produz mal-estar, pois mesmo com uma considerável atenuação dos aparelhos repressivos – pelo menos em alguns poucos lugares – a vida de uma exorbitante quantidade de pessoas continua se direcionando pela impossibilidade, pela tristeza, pela passividade e pela morbidez.
As redes de poder – que funcionam em macro e micro instâncias – estabelecem não apenas formas de repressão do desejo. Essas instâncias reguladoras homogeneízam as singularidades desejantes, modelam e padronizam as heterogeneidades da existência humanas. Seriam maneiras de produzir o desejo, de gerí-lo, e não de simplesmente reprimi-lo. Esses mecanismos de fabricação e administração de sentidos de vida estão em plena atividade nesse momento.
Diante dos inúmeros discursos de liberação – sexual, religiosa, política, econômica, entre muitas outras – que se proliferam no terreno do presente, parece que o desejo, em suas infindáveis esferas, continua passando por processos de direcionamentos, operados por instâncias reguladoras, empresas da vida que trabalham a todo vapor, ou melhor, em alta performance, maximizando o custo-benefício. O modelo capitalista de mundo se apropria com grande força dos processos de fabricação de sentidos, de produção de desejo, de homogeneização de comportamentos, plasmando formas “bem sucedidas” de vida. Nesse mundo do consumo, em que tudo pode ser comprado, o mal-estar persiste e se transmuta, se multiplica e individualiza. Eis aqui uma rentável mina de ouro da indústria farmacêutica, terapêutica, analítica, religiosa, acadêmica...
Apesar de todas as hipotéticas evoluções que se instauraram na organização das formas-mundo do presente, o mal-estar não foi dissipado, nem sequer reduzido. Parece que a única evolução – ou melhor – transformação ocorrida nos últimos tempos, diz respeito unicamente às técnicas, desde as referentes à maneira de fabricar um determinado produto numa metalúrgica, até a forma “correta” de criar os filhos, de pensar, de praticar esportes, de falar em público, de se relacionar sexualmente, de perceber uma expressão artística... Sempre há uma maneira correta para se fazer tudo. Existem milhões de especialistas sempre prontos para determinar o que podemos fazer ou não. As normas morais se convertem em normas científicas/morais.
A individualidade tão sonhada pelo liberalismo e defendida com unhas e dentes por muitos psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e outros psicotécnicos das mais variadas vertentes, formata modelos de vida – ou sobrevida – que são extremamente débeis, tristes, passivos, cordiais. Vidas serializadas, separadas da potência de agir, individualizadas, subjetividades capitalísticas, talvez sejam alguns dos disparadores dos mal-estares contemporâneos.
Nesse universo de existências atual, que constitui os modos de produção de sentidos de vida, não seria simples falar em um fim do mal-estar. Os próprios modelos de mundo ocidentais parecem necessitar dos mal-estares, apropriam-se deles para a manutenção do processo de perpetuação das paixões tristes, da impossibilidade de ação autônoma e da submissão desmedida.
Mlaicon Barbosa
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