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quinta-feira, 24 de abril de 2008

Fernando Pessoa

Não se subordinar a nada – nem a um homem, nem a um amor, nem a uma idéia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela – tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima intelectual dos que não vivem sem pensar.Pertencer – eis a banalidade.Credo, ideal, mulher ou profissão – tudo isso é a cela e as algemas.Ser é estar livre.A mesma ambição, se nos orgulhamos de que é, é um fardo, não nos orgulharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual nos puxam.Não: nem ligações connosco!Livres de nós como dos outros, contemplativos sem êxtase, pensadores sem conclusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que a distracção dos algozes concede ao nosso êxtase na parada.Temos amanhã a guilhotina.Se a não tivéssemos amanhã tê-la-íamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o repouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propósitos e dos prosseguimentos.O sol dourará nossas frontes sem rugas e a brisa terá frescura para quem deixar esperar.
Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regressando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho.Senti tudo de repente.E minha alegria manifesta-se por este gesto da raiva que não sinto.

Fernando Pessoa – Livro do Desassossego